As festas dançantes de Amaraji até o final da década de 1960 eram realizadas ao som de orquestras. A da usina Bom Fim, regida pelo maestro Basileu, a da usina Pedroza, ou o conjunto de Edmundo França, exímio saxofonista e clarinetista de Recife. Os festejos juninos eram exceção. Naqueles eventos, trios de sanfona, triângulo e zabumba tocavam o xote e o baião, fazendo a alegria das comemorações de Santo Antônio, São João e São Pedro lá no prédio do mercado público antes da reforma. Ainda não se falava em forró. Os bailes da sociedade mais seleta, que, na década de 1930 e 1940, eram realizados no salão nobre da Prefeitura, atual Câmara de Vereadores, a partir de 1950, passaram a ser realizados no salão da Rádio Educadora A Voz de Amaraji, quando o prefeito Jorge Coelho inaugurou o prédio onde ainda hoje se lê em sua fachada: “Artes, Scientiae et Litterae”.
Nos anos sessenta, os Beatles, Bee Gees, Rolling Stones, Roberto Carlos, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys e muitos outros levavam suas vozes e o eco dos acordes das guitarras e a percussão das baterias aos quatro cantos do mundo e do Brasil. E aquele som moderno, que convidava para uma dança animada e eletrizante, influenciou muitos artistas e bandas da época.
O rock era o som do momento. A gente chamava de iê, iê, iê e o grupo que tocava não era banda e sim conjunto. E foi nessa onda de modernidade que eu e um grupo de amigos, Aline Costa Gomes, Dácio Cavalcanti, Semíramis Alves, Adailton Oliveira, Antônio Carlos dos Santos, Sônia Brito e Pedro Batista, decidimos fazer o primeiro baile de iê iê Iê em Amaraji, exatamente no dia 28 de outubro de 1967. A cidade, finalmente, iria sair do ritmos do fox, do swing e do bolero para entrar na época do iê, iê, Iê. O evento ia se chamar “Festinha Legal”, título tirado de um disco de vinil de Peter Thomas & The Spirituals. Festinha Legal era uma das faixas do disco muito rodadas nos “Hi-Fi” (hai-fai), dancinhas da jovem guarda nos finais de semana no salão da Rádio Educadora.
Tratei logo de contratar o conjunto “Os Vândalos”, grupo composto por meu primo Edmundo França Lima, além dos amigos Ricardo, Márcio e Menzo, todos residentes lá em Casa Forte no Recife. Cartazes espalhados pela cidade e colados nos coletivos intemunicipais, cartas enviadas para o programa Caixinha de Pedidos do comunicador Walter Lins, na Rádio Clube de Pernambuco, etc. O baile ia ser no prédio do Cine-Teatro Amaraji (atual agência do Banco do Brasil) com a sua tradicional rampa. A gente dançava descendo e subindo a rampa.
Na manhã do sábado, dia do baile, Sônia Brito, Dácio Cavalcanti, Semíramis Alves, Adailton Oliveira, Antônio Carlos dos Santos, Pedro Batista, (primo de Lúcia Fontes), alguns olheiros e eu, estávamos no salão do cinema. Até aquele momento, havia sido vendida apenas uma mesa para o baile. A professora Djalva Teixeira comprou, mas avisou que não ia poder participar. Não tínhamos dinheiro nem patrocínio. Era uma trabalheira: transportar as cadeiras do cinema para a parte de trás da tela, varrer e lavar o salão, improvisar uma decoração, pedir mesas emprestadas para usar no bar, etc. Na cidade, o assunto era a festa dos “cabeludos”. Cabelos compridos, calça justa, camisa colorida, isso era lá coisa de homem.
Dácio Cavalcanti era o encarregado do bar da festa. Teria de providenciar as bebidas e comprar 12 galinhas para o bar. Nas festas, os bares não serviam galetos nem bistecas, isso veio muito tempo depois, serviam “tira-gosto de galinha assada”. Aline Costa Gomes estava ausente naquele momento.
E a decoração do salão? O que dependurar naquele imenso telhado do prédio e como ornamentar as paredes. Houve, então, um verdadeiro derrame de idéias e slogans, que foram sendo escritos em letras garrafais e colados nas paredes do cinema: “Mandem os Velhos para o Vietnam e os Jovens para a Universidade”, Esta Cidade só Tem Gente Quadrada”, “O Povo de Amaraji é Pirangueiro”, “Frexeiras Devia se Chamar Flexeiras, pois é Terra de Índios”, e vários outros. Não se sabe de onde, apareceu um jornal com a foto de Che Guevara. Esta, foi recortada e colada numa parede com os dizeres “Viva Che Guevara” e “Vamos Vingar a Morte de Che Guevara”.
Lá pelas dez e meia, entraram em fila indiana e em polvorosa, as autoridades e líderes da cidade: o delegado Pedro Chaves, avô de Adailton, Albérico Batista, o prefeito, seu Raul Araújo, Vanildo Benigno, da Cooperativa, Luiz Andrade do engenho Animoso, Gumercindo Medeiros da coletoria, Herculano Fabrício, José Pequeno e o sargento Jacinto, um militar aposentado que vivia num sítio da cidade, entre outros. Algum dos “olheiros”, dentre os que entravam e saíam do cinema, foi avisar ao delegado que ia haver uma festa de comunistas no cinema. Aquilo era inadimissível na época da "revolução", um ano antes do Ato Institucional nº 5, emitido pelo governo militar.
- Mas o que é isso, perguntou pasmo e espantado o tenente Pedro Chaves? De quem foi a idéia de escrever esses absurdos?
- Fui eu, responde Antônio Carlos dos Santos.
- Mas não é possível, Toinho, logo você que fez um discurso tão democrático no desfile do Dia 7 de Setembro? Não estou acreditando.
E os ânimos se exaltaram, os comentários e críticas se sucederam. Falavam o prefeito e o delegado; seu Luiz de Animoso e seu Raul criticavam; Gumercindo, Herculano e Zé Pequeno, bastante chocados. O sargento Jacinto tomou a palavra e tentou convencer às autoridades que aquilo era uma brincadeira do grupo. Disse que todos eram filhos de pessoas de bem da cidade e não tinham nada de comunista, ou coisa parecida. Mas de nada adiantou. A festa estava acabada. Fomos aconselhados a fazer o baile em outra ocasião.
Fechamos o cinema e cada um retornou para suas casas. Seu Raul mandou que eu fosse a Recife cancelar o contrato e lá foi eu de rural willys azul e branca, conduzido por seu Silvestre, que não deu uma palavra em todo o percurso de ida e volta. Por sorte, os Vândalos conseguiram tocar numa festa de aniversário naquele sábado à noite e o prejuízo deles não foi total.
À noite, fui à igreja assistir a missa. A multidão no entorno do pé-do-santo (ao redor da imagem do São José da praça) era grande. Passei discretamente pelo local e vi todos os olhos e cochichados em minha direção, e mais de uma vez escutei a palavra comunista.
Terminada a missa, o prefeito me chamou e perguntou pela festa. Disse que não era para ter cancelado, bastava mudar a decoração, e retirar os cartazes. Mas o mal já estava feito.
Dácio Cavalcanti havia comprado doze galinhas e, para o prejuízo não ser maior, conseguiu vender algumas. Os compradores foram: Amaro Graciano (Gode); seu Mota, do Bar dos Motoristas; Albérico Batista, o prefeito; Valdo Moraes, da padaria, e Arinaldo Crispim, técnico da ANCARPE local. Eu fui devolver à professora Djalva Teixeira o dinheiro da mesa reservada, mas ela não aceitou.
O evento não aconteceu, mas, em 1987, fizemos a festa dos “20 Anos Depois”, no Clube dos Tamarindos, animada pelo grupo Skorpios. Em 2002, no dia 7 de dezembro, mais uma vez outra comemoração, com o baile “35 Anos Depois” animado pelo grupo Siboney. Para o ano que vem a idéia dos “45 Anos Depois” já começa a vingar.