quarta-feira, 28 de março de 2012

Se o Padre não Encontrasse a Aleluia, o Mundo Acabava

A Semana Santa até a década de 1950 era um período de recolhimento, orações, penitência e temor para muitos. A vida normal do povo dava lugar a um sentimento cristão, com tudo voltado para o Salvador. Logo a partir do Domingo de Ramos, sem imposição de nenhuma lei ou dogma, apenas pela tradição, as pessoas passavam a respeitar aquele período. Em Amaraji a Rádio Educadora deixava de tocar músicas profanas, o cinema não funcionava, exceto algumas vezes, para exibir o filme da Paixão de Cristo e muitos comerciantes pareciam pesar suas mercadorias com mais honestidade.
A Igreja proibia o consumo de carne durante toda a Semana Santa. A abstinência era total e rígida e o comércio local tratava de providenciar o abastecimento de peixes para a população. O rio Amaraji, na época um manancial caudaloso, provia a população de traíras, carás, gundelos, jundiás e piabas. O bacalhau, vendido em barricas de pinho, era amplamente vendido nos barracões dos engenhos e em algumas vendas da cidade. As sardinhas salgadas, enlatadas, conhecidas como “pela olho”, estavam sempre presentes na mesa dos mais carentes.
Bolos e doces, também eram evitados nesse período de penitência. Não se podia comer doce e nem chupar cana, pois seria falta de respeito, já que Nosso Senhor tinha bebido fel.
Algumas crendices populares tinham amplo uso nesta época e variavam de cidade em cidade. Coisas simples e sem nenhum sentido ofensivo eram consideradas pecaminosas, passando a serem proibidas. Olhar-se ao espelho, usar batom e mesmo perfume, por serem sinais de vaidade; varrer e espanar a casa, pelo fato de que naquele dia o trabalho era proibido; tomar banho, pelo perigo das tentações à vista do corpo, namorar, cantar, dançar e até assobiar seriam sinais de uma alegria incompatível com um momento tão triste; manter relações sexuais durante a Semana Santa seria pecado mortal, principalmente na Sexta-Feira da Paixão. O homem que assim procedesse, ainda que legalmente casado, ficaria impotente para o resto da vida e a mulher ficaria incapacitada para gerar filhos. O rebento, coitado, nasceria com o “cão no couro”, sendo infeliz por toda a vida. Embriagar-se nesses dias, seria condenar-se a nunca recuperar o juízo.
O evento se iniciava com uma missa solene no Domingo de Ramos. As orações e cânticos em latim e, como parte da solenidade, uma procissão pela praça e no entorno da matriz de São José. Os fiéis, crianças e adulto, levavam ramos de palmeiras nas mãos que eram acenados festivamente. Era a representação da chegada de Jesus em Jerusalém. Na igreja, as imagens dos santos estavam encobertas de tecido roxo e somente desnudas no domingo de páscoa.
Os ramos de palmeiras da procissão de ramos eram guardados cuidadosamente em casa para serem queimados em momentos de grandes tempestades com raios e trovões. A tradição dizia que os moradores daquela casa estariam protegidos.
Da segunda até a sexta-feira o recolhimento era geral. Os poucos que possuíam um aparelho de rádio ligavam apenas para o noticiário do Repórter Esso. A cidade ficava parada. Os homens sem chapéu pela rua, pouca conversa.
Na quinta-feira, a celebração da missa da Última Ceia. Os sinos e campainhas repicavam festivamente para, em seguida, se calarem até à meia-noite do sábado de aleluia. Aquele som festivo dava lugar ao toque triste das matracas e a cidade iniciava seu recolhimento coletivo.
Conforme já foi falado, tocar algum instrumento, cantar, assoviar, tamborilar os dedos sobre a mesa, nada que demonstrasse alegria era permitido. Significava um desrespeito ao sofrimento e à morte de Jesus.
Na época, eu com menos de dez anos, morava no engenho, mas passava a semana na casa de minha avó na cidade para poder frequentar a escola. Todas as tarefas domésticas eram realizadas na quinta-feira: limpar a casa, alimentar as galinhas e os pombos, ordenhar as vacas, etc. Na sexta só se trabalhava na cozinha.
Minha avó, dona Trifônia Coelho (Iaiá) era a presidente do Apostolado da Oração e minha tia Marieta, solteira, a modista e professora de corte e costura mais conhecida da cidade, além de bordadeira de peças finas, era a presidente da Pia União das Filhas de Maria. Ambas, muito ligadas ao pároco da cidade. Eu vivia realmente num ambiente que ficava a um passo do Vaticano e a alguns degraus do céu.
Nas residências, as famílias planejavam o almoço da sexta-feira, dia de jejum absoluto. O tradicional feijão de coco, acompanhado de arroz, quibebe, bredo de coco e as várias iguarias feitas de peixe; de coco, assado e de escabeche. Alguns até preparavam um prato de bacalhau assado na brasa. Carnes e aves eram totalmente proibidas naquele dia. Pecava gravemente quem as consumisse. Naquela sexta-feira santa todas as pessoas maiores de 18 anos deveriam jejuar. Pela manhã, um café bastante frugal. Ao meio-dia em ponto, pedia-se a bênção dos pais, avós, e parentes mais velhos e todos se sentavam à mesa. Um copo de vinho era permitido aos adultos, naquele almoço. A próxima refeição só à noite: sopa e pão.
Difícil encontrar uma explicação, mas numa sexta-feira da paixão, a vontade de cantar e assoviar era sempre maior que nos outros dias. E lá ficava eu andando pra lá e pra cá pela casa, cantando:
- “Olha a Noite, sou um pobre jornaleiro, que não ...." ou então, “Adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram..." ou ainda “Angustia de no tenerte a ti, tormento de no tener tu amor ...” do cubano Benvenido Granda. Estas eram as músicas muito tocadas na Rádio Educadora a Voz de Amaraji, na programação diária organizada por Dr. Jorge Coelho e Amaro Graciano (Gode). Eu sabia todas.
E, quando eu menos esperava, tia Marieta aparecia e reclamava com rigor da minha cantoria. Logo eu esquecia, e recomeçava, agora, assoviando. Novamente ela aparecia e já me dava um belo puxão de orelha junto com um solavanco, lembrando que eu estava pecando cantando aquilo na Sexta-feira Santa. Tornei-me a esquecer da Paixão de Cristo, e cantei novamente uma das músicas, acompanhando com os dedos na mesa do centro da sala. Lá vem a tia quase correndo, irritada, me apertou o braço, me aplicou um muxicão bem violento e ainda sussurrou no meu ouvido, quase mordendo minha orelha:
- Quer ir pra o inferno, com tripa e tudo é, seu demente atrevido? Quando se confessar conte ao padre esse pecado cabeludo!
Meu maior desejo era que chegasse logo o domingo de Páscoa pra Jesus ressuscitar de uma vez e eu poder cantar em paz minhas músicas. Nem conseguia almoçar direito naquele dia. Para mim e outras crianças, aquela semana era meio desgastante.
Na madrugada de sexta-feira para sábado, havia a queimação do Judas, boneco feito com roupas velhas para ser queimado ao final. Mas, antes, havia o testamento do traidor onde constavam bens destinados a políticos, familiares e correligionários numa crítica à sua atuação administrativa ou a pessoas pouco estimadas da comunidade.
Uma crendice típica da paróquia de Amaraji dizia que, se o padre não encontrasse a aleluia até às três da tarde do sábado (a aleluia era uma mancha de sangue perdida dentro do missal), o mundo ia se acabar. Esta tradição fazia com que muitas crianças ficassem morrendo de medo, apavoradas na verdade. E perguntavam-se entre si: e se o padre se distrair e não encontrar a pinta de sangue? E se no almoço, ele tomasse mais de um copo de vinho? Todos nós pequenos pensávamos numa forma de ajudar a encontrar a aleluia, desde que o mundo não acabasse. Tinha criança com dor de barriga, enjoada, apavorada mesmo. De vez em quando alguém ia até a porta de igreja sondar se o padre já havia encontrado a mancha de sangue. Os adultos, tão compenetrados em suas proibições, abstinências e orações, nada respondiam e pouco se preocupavam com nossos temores. A gente só sabia que o padre tinha encontrado a mancha de sangue de tardezinha porque o mundo estava inteiro, nada havia mudado.
Finalmente à meia-noite, a missa de aleluia.  Os sinos repicando novamente. Cânticos alegres e os fiéis transbordando de alegria pela ressurreição de Cristo. Do lado de fora, as crianças gritavam: “Aleluia, Aleluia, carne no prato e farinha na cuia”.
Nas casas a celebração da Páscoa. Bolos, doces, refrigerantes e muita alegria. Só me restava esperar o próximo ano para mais uma vez e aguardar que a aleluia fosse encontrado. Ainda assim, minha preocupação continuava e ia bem mais além. E se mandassem pra paróquia algum padre velhinho, já meio caduco e curto da vista. Como é que ele ia se concentrar e encontrar a pinta de sangue no missal.

segunda-feira, 12 de março de 2012

18 - A Borboleta vai à Escola


Quando chegou à idade escolar, Dona Dapaz matriculou Aline no Grupo Escolar Dom Luiz de Brito. Ela estava se achando mesmo, subia as escadas, descia, entrava na secretaria, conversava com um, conversava com outro. Fazia questão de mostrar que a farda dela era a mais arrumada. Como estava usando uns óculos novos, ficava tirando-o com frequëncia e limpando como uma flanelinha amarela.
Logo fez amizade com as alunas mais aplicadas e até caiu nas boas graças de dona Nely, a diretora. Sua primeira professora foi dona Bernadete Silva. Nas festas e eventos da escola ela sempre se apresentava, cantando, declamando ou, simplesmente ajudando as mestras.  
E pra continuar sabendo mais, leia o capítulo completo no final da página.