A Semana Santa até a década de 1950 era um período de recolhimento, orações, penitência e temor para muitos. A vida normal do povo dava lugar a um sentimento cristão, com tudo voltado para o Salvador. Logo a partir do Domingo de Ramos, sem imposição de nenhuma lei ou dogma, apenas pela tradição, as pessoas passavam a respeitar aquele período. Em Amaraji a Rádio Educadora deixava de tocar músicas profanas, o cinema não funcionava, exceto algumas vezes, para exibir o filme da Paixão de Cristo e muitos comerciantes pareciam pesar suas mercadorias com mais honestidade.
A Igreja proibia o consumo de carne durante toda a Semana Santa. A abstinência era total e rígida e o comércio local tratava de providenciar o abastecimento de peixes para a população. O rio Amaraji, na época um manancial caudaloso, provia a população de traíras, carás, gundelos, jundiás e piabas. O bacalhau, vendido em barricas de pinho, era amplamente vendido nos barracões dos engenhos e em algumas vendas da cidade. As sardinhas salgadas, enlatadas, conhecidas como “pela olho”, estavam sempre presentes na mesa dos mais carentes.
Bolos e doces, também eram evitados nesse período de penitência. Não se podia comer doce e nem chupar cana, pois seria falta de respeito, já que Nosso Senhor tinha bebido fel.
Algumas crendices populares tinham amplo uso nesta época e variavam de cidade em cidade. Coisas simples e sem nenhum sentido ofensivo eram consideradas pecaminosas, passando a serem proibidas. Olhar-se ao espelho, usar batom e mesmo perfume, por serem sinais de vaidade; varrer e espanar a casa, pelo fato de que naquele dia o trabalho era proibido; tomar banho, pelo perigo das tentações à vista do corpo, namorar, cantar, dançar e até assobiar seriam sinais de uma alegria incompatível com um momento tão triste; manter relações sexuais durante a Semana Santa seria pecado mortal, principalmente na Sexta-Feira da Paixão. O homem que assim procedesse, ainda que legalmente casado, ficaria impotente para o resto da vida e a mulher ficaria incapacitada para gerar filhos. O rebento, coitado, nasceria com o “cão no couro”, sendo infeliz por toda a vida. Embriagar-se nesses dias, seria condenar-se a nunca recuperar o juízo.
O evento se iniciava com uma missa solene no Domingo de Ramos. As orações e cânticos em latim e, como parte da solenidade, uma procissão pela praça e no entorno da matriz de São José. Os fiéis, crianças e adulto, levavam ramos de palmeiras nas mãos que eram acenados festivamente. Era a representação da chegada de Jesus em Jerusalém. Na igreja, as imagens dos santos estavam encobertas de tecido roxo e somente desnudas no domingo de páscoa.
Os ramos de palmeiras da procissão de ramos eram guardados cuidadosamente em casa para serem queimados em momentos de grandes tempestades com raios e trovões. A tradição dizia que os moradores daquela casa estariam protegidos.
Da segunda até a sexta-feira o recolhimento era geral. Os poucos que possuíam um aparelho de rádio ligavam apenas para o noticiário do Repórter Esso. A cidade ficava parada. Os homens sem chapéu pela rua, pouca conversa.
Na quinta-feira, a celebração da missa da Última Ceia. Os sinos e campainhas repicavam festivamente para, em seguida, se calarem até à meia-noite do sábado de aleluia. Aquele som festivo dava lugar ao toque triste das matracas e a cidade iniciava seu recolhimento coletivo.
Conforme já foi falado, tocar algum instrumento, cantar, assoviar, tamborilar os dedos sobre a mesa, nada que demonstrasse alegria era permitido. Significava um desrespeito ao sofrimento e à morte de Jesus.
Na época, eu com menos de dez anos, morava no engenho, mas passava a semana na casa de minha avó na cidade para poder frequentar a escola. Todas as tarefas domésticas eram realizadas na quinta-feira: limpar a casa, alimentar as galinhas e os pombos, ordenhar as vacas, etc. Na sexta só se trabalhava na cozinha.
Minha avó, dona Trifônia Coelho (Iaiá) era a presidente do Apostolado da Oração e minha tia Marieta, solteira, a modista e professora de corte e costura mais conhecida da cidade, além de bordadeira de peças finas, era a presidente da Pia União das Filhas de Maria. Ambas, muito ligadas ao pároco da cidade. Eu vivia realmente num ambiente que ficava a um passo do Vaticano e a alguns degraus do céu.
Nas residências, as famílias planejavam o almoço da sexta-feira, dia de jejum absoluto. O tradicional feijão de coco, acompanhado de arroz, quibebe, bredo de coco e as várias iguarias feitas de peixe; de coco, assado e de escabeche. Alguns até preparavam um prato de bacalhau assado na brasa. Carnes e aves eram totalmente proibidas naquele dia. Pecava gravemente quem as consumisse. Naquela sexta-feira santa todas as pessoas maiores de 18 anos deveriam jejuar. Pela manhã, um café bastante frugal. Ao meio-dia em ponto, pedia-se a bênção dos pais, avós, e parentes mais velhos e todos se sentavam à mesa. Um copo de vinho era permitido aos adultos, naquele almoço. A próxima refeição só à noite: sopa e pão.
Difícil encontrar uma explicação, mas numa sexta-feira da paixão, a vontade de cantar e assoviar era sempre maior que nos outros dias. E lá ficava eu andando pra lá e pra cá pela casa, cantando:
- “Olha a Noite, sou um pobre jornaleiro, que não ...." ou então, “Adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram..." ou ainda “Angustia de no tenerte a ti, tormento de no tener tu amor ...” do cubano Benvenido Granda. Estas eram as músicas muito tocadas na Rádio Educadora a Voz de Amaraji, na programação diária organizada por Dr. Jorge Coelho e Amaro Graciano (Gode). Eu sabia todas.
E, quando eu menos esperava, tia Marieta aparecia e reclamava com rigor da minha cantoria. Logo eu esquecia, e recomeçava, agora, assoviando. Novamente ela aparecia e já me dava um belo puxão de orelha junto com um solavanco, lembrando que eu estava pecando cantando aquilo na Sexta-feira Santa. Tornei-me a esquecer da Paixão de Cristo, e cantei novamente uma das músicas, acompanhando com os dedos na mesa do centro da sala. Lá vem a tia quase correndo, irritada, me apertou o braço, me aplicou um muxicão bem violento e ainda sussurrou no meu ouvido, quase mordendo minha orelha:
- Quer ir pra o inferno, com tripa e tudo é, seu demente atrevido? Quando se confessar conte ao padre esse pecado cabeludo!
Meu maior desejo era que chegasse logo o domingo de Páscoa pra Jesus ressuscitar de uma vez e eu poder cantar em paz minhas músicas. Nem conseguia almoçar direito naquele dia. Para mim e outras crianças, aquela semana era meio desgastante.
Na madrugada de sexta-feira para sábado, havia a queimação do Judas, boneco feito com roupas velhas para ser queimado ao final. Mas, antes, havia o testamento do traidor onde constavam bens destinados a políticos, familiares e correligionários numa crítica à sua atuação administrativa ou a pessoas pouco estimadas da comunidade.
Uma crendice típica da paróquia de Amaraji dizia que, se o padre não encontrasse a aleluia até às três da tarde do sábado (a aleluia era uma mancha de sangue perdida dentro do missal), o mundo ia se acabar. Esta tradição fazia com que muitas crianças ficassem morrendo de medo, apavoradas na verdade. E perguntavam-se entre si: e se o padre se distrair e não encontrar a pinta de sangue? E se no almoço, ele tomasse mais de um copo de vinho? Todos nós pequenos pensávamos numa forma de ajudar a encontrar a aleluia, desde que o mundo não acabasse. Tinha criança com dor de barriga, enjoada, apavorada mesmo. De vez em quando alguém ia até a porta de igreja sondar se o padre já havia encontrado a mancha de sangue. Os adultos, tão compenetrados em suas proibições, abstinências e orações, nada respondiam e pouco se preocupavam com nossos temores. A gente só sabia que o padre tinha encontrado a mancha de sangue de tardezinha porque o mundo estava inteiro, nada havia mudado.
Finalmente à meia-noite, a missa de aleluia. Os sinos repicando novamente. Cânticos alegres e os fiéis transbordando de alegria pela ressurreição de Cristo. Do lado de fora, as crianças gritavam: “Aleluia, Aleluia, carne no prato e farinha na cuia”.
Nas casas a celebração da Páscoa. Bolos, doces, refrigerantes e muita alegria. Só me restava esperar o próximo ano para mais uma vez e aguardar que a aleluia fosse encontrado. Ainda assim, minha preocupação continuava e ia bem mais além. E se mandassem pra paróquia algum padre velhinho, já meio caduco e curto da vista. Como é que ele ia se concentrar e encontrar a pinta de sangue no missal.
Adoro suas crônicas Roberto eu também morria de medo que padre Inácio não encontrasse a aleluia, não sei porque a sexta santa era o dia que eu tinha mais fome e com 7 anos adorava não tomar o banho completo, beijos bel.
ResponderExcluirLegal isso né tb até hj penso se eles encontraram a aleluia foi com essa crença q cresci kkkkk
ResponderExcluirEu estava lembrando disso, e perguntando aos amigos se lembravam dessa passagem da infância. Até hoje não sabia o que era a Aleluia, o Google sabe tudo, pois, encontrei e repassei para os amigos!
ResponderExcluir